Tivemos mais anos de ditadura em Portugal do que os polacos tiveram de comunismo. 41 anos de Estado-Novo contra 37 anos de República Popular da Polónia (PRL ou Polska Rzeczpospolita Ludowa). Uma diferença pouco assinalável mas dois regimes completamente opostos - ainda que com semelhanças - derivados das grandes mudanças sentidas na Europa a partir do século XX e após o conflito mundial entre 1939 e 1945.
Em contraste Portugal não é um país pequeno, quando tínhamos as colónias... Malange e a Lunda por cima da Polónia. |
Uma sardinha para quatro (ou para uma família consoante as versões), senhas de ração (kartki) para aquisição de commodities que nem sempre estavam disponíveis, beber vinho para dar pão a um milhão de portugueses, trabalhar para o bem-estar do povo e o progresso mas ver uma classe política a viver em luxo ou com privilégios; Deus, Pátria e Família apelidado noutros regimes como ópio do povo onde o ateísmo de Estado fazia contraste com o conservadorismo e a fé católica protegidos na Península Ibérica por António de Oliveira Salazar e Francisco Franco. Policia política em ambos os regimes, deportações e perseguição da oposição são algumas das semelhanças entre os outrora inimigos.
A minha experiência de vida - iniciada nos últimos meses de governação de Marcelo Caetano - e a da minha companheira de vida (nascida na Polónia tendo vivido 13 anos de comunismo) diferem imenso mas têm em comum aquela sensação que a qualquer momento poderíamos presenciar a agonia de uma terceira guerra mundial. Uma guerra nuclear com grandes possibilidades de ser a última. Na infância não entendemos verdadeiramente o que nos rodeia. Os americanos e a OTAN eram os nossos aliados e protectores e os russos junto com os países-satélite da URSS os nossos algozes. Todos tinham misseis nucleares de longo alcance com ogivas múltiplas capazes de fazerem a explosão de Hiroshima e Nagasaki parecer o rebentamento de um petardo. Os russos exibiam os misseis nucleares em paradas monumentais frente ao Kremlin enquanto os americanos asseguravam que tinham a tecnologia mais avançada capaz de cilindrar o inimigo. Segundo documentos secretos do tempo da Guerra Fria a Polónia seria palco dos primeiros rebentamentos de bombas atómicas servindo como "sacrifício" para uma possível paz entre os beligerantes.
Parada em 1959. Ao estilo soviético a marcha demonstra bem a influência da URSS nos destinos da política polaca.
A escassez de bens de primeira necessidade e as "crises" constantes levaram à necessidade de se criarem mecanismos de controlo do consumo. Estudos científicos elaborados demonstravam as doses diárias de produtos alimentícios necessárias à satisfação das necessidades básicas da população enquanto o Estado controlava a quantidade de combustível necessário para um mês para aqueles que conseguiam um automóvel depois de anos de espera.
Enquanto se reconstruia o país depois da desolação gerada pela guerra e se erigiam bairros inteiros com prédios semelhantes a colmeias surgia também uma sociedade que ambicionava mais do que apenas a reconstrução. A vida nas cidades, sobretudo nas grandes urbes como Varsóvia, Łódź, Poznań, Cracóvia e Gdańsk gerou uma classe-média onde os quadros de grandes empresas estatais, engenheiros, doutores e técnicos especializados procuravam produtos ocidentais. Todos sabiam que as proibições e as pressões políticas causam mais danos e incentivam o crime nomeadamente o contrabando. Desse modo surge a ideia de se criarem lojas onde se aceitavam dólares americanos e marcos da RFA. Já que a entrada principal estava fechada entrava-se pela "porta do cavalo"!
Os PEWEX (Przedsiębiorstwo Eksportu Wewnętrznego - Firma de Exportações Internas) tinham tudo o que havia no ocidente, ou quase tudo. Quem tinha algum dinheiro para despender podia trocar no banco PKO os złoty por dólares ou marcos e comprar produtos proibidos pelo regime. De acordo com fontes no Wikipédia os PEWEX tinham:
- vestuário (Jeans),
- tecidos, cortinas, fio,
- mercearia (de doçarias a café, Coca-Cola e carnes frias inclusivamente fiambre polaco para exportação)
- bebidas alcoólicas,
- cosméticos
- brinquedos (LEGO e carrinhos de miniatura Matchbox)
- artigos de desporto,
- eletrodomésticos
- computadores,
- automóveis
- produtos para automóveis (óleos, pneus),
- materiais de construção,
- ferramentas eléctricas
Haviam também as cadeias de lojas BALTONA que se podem comparar a lojas duty-free em aeroportos, portos marítimos e nas fronteiras. Durante o comunismo e tal como nas PEWEX eram aceites moedas estrangeiras. No aeroporto de Varsóvia (Okeciem) encontra-se uma com o seu conhecido logótipo.
Ao longo destes anos que vivo na Polónia tenho-me interessado por estes pormenores da vida dos polacos na PRL e dos testemunhos que tenho recolhido não foi um pesadelo, porventura uma noite mal dormida, pelo menos para a maioria. Há uma certa ideia - talvez fruto da propaganda americana - que nos países do ex-bloco soviético (sobretudo na Polónia, Checoslováquia, Jugoslávia e Bulgária) se viviam em condições atrozes e de grande miséria. Houve sem margem para duvidas perseguições políticas, repressão e nos primeiros anos da década de 50 deportações de dissidentes para a Sibéria onde os GULAG trataram de fazer desaparecer e calar as vozes dissidentes no entanto também houveram vantagens.
Das vantagens o que me têm dito era o emprego praticamente garantido (não havia margem para não poder trabalhar a não ser por motivos de invalidez ou saúde) e a construção de habitação onde, ainda hoje, habita uma grande parte da população urbana polaca. Desses tempos fica também a tradição da "parapetówka", uma festa do "parapeito da janela" sempre que se aluga ou se compra um apartamento. Dizem-me que nesses tempos era comum as famílias habitarem os apartamentos ainda antes de estarem totalmente acabados vai dai a possibilidade de beber o vodka no parapeito da janela. Verdade ou não? Não sei ao certo; o facto é que essas festas estão bem enraizadas na cultura popular e há uma certa tolerância dos vizinhos sempre que se fazem.
Em 1989 uma nova era começa para a Polónia. A herança comunista ainda se sente se bem que vai sendo cada vez mais diluída à medida que os anos vão passando e sobretudo pelas novas gerações de polacos nascidos na democracia e pouco interessados em coisas do passado.
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