Guerra Junqueiro
"Um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira a falsificação, violência ao roubo, donde provem que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este,finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País. [.] A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas; Dois partidos [.] sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, [.] vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar."
Guerra Junqueiro, "Pátria", 1896.
Oiço e leio essa expressão frequentemente sempre que falo com alguém que vive em Portugal ou nos fóruns da Internet que regularmente atendo. Isto aqui anda mau... O texto de Guerra Junqueiro é centenário mas podia ter sido escrito hoje. Portugal hoje és nevoeiro, dizia Fernando Pessoa em Mensagem.
Antes de ter a certeza de emigrar para a Polónia já tinha sido encorajado por alguns elementos da família a fazê-lo o mais rapidamente possível. Diziam eles que em Portugal "a mama está a acabar" e "esses novos países" vão ser o futuro. Na altura como estávamos desempregados comecei a frequentar uma formação profissional em têxteis mas fui informado - passados dois meses - que afinal não a podia fazer pois, apesar de ter terminado a frequência universitária, não tinha ainda o diploma de licenciatura. Foram simpáticos, a sério. Disseram-me que podia frequentar a formação mas não receberia o certificado e o salário, bem como a possibilidade de estagiar como comercial e receber os tais dois ordenados mínimos. Agradeci e fui-me embora, arranquei do parque de estacionamento a queimar pneu.
Foi nesse dia que a decisão tornou-se uma realidade. A Paula foi informada de chofre para fazer as malas pois amanhã bem cedo estaríamos a caminho da Polónia, de carro. O mais duro foram as despedidas com a minha mãe, irmã e cunhado, eles também em situação de desemprego de longa duração e a tomarem medicação por causa da depressão; as curas estilo "remendo" dos nossos médicos, os "óculos cor-de-rosa" como dizia o outro.
Arrancamos de manhã depois de abraços, beijos e lágrimas da minha mãe e da Paula. Ainda a vi pelo espelho com a nossa cadela Bonnie ao colo, só a voltaria a ver dois anos e meio mais tarde.
Tinha mesmo desistido de Portugal, íamos viver para a Polónia, não tínhamos garantias de nada, apenas fé em melhores dias e uma casa própria que nos esperava, algo que em Portugal - infelizmente - não tínhamos.
Créditos para Habitação a 25 ou 30 anos com dinheiro que não tínhamos também estava fora de questão.
No rádio do meu Opel Corsa passavam as notícias sobre a possibilidade de Durão Barroso resignar o seu cargo de Primeiro-Ministro e ir para Bruxelas, até o Chefe do Executivo havia desistido, ironizei.
Saímos de Portugal pela fronteira na Galiza, logo a seguir a Viana do Castelo e em direcção a Vigo. Quando vi a tabuleta ESPANA parei num parque que ali existe e contemplei Portugal. Tudo verde, casas brancas com telhados cor de laranja, casas grandes. Adeus!
Arranquei a queimar pneu para quatro dias depois estacionar o carro em frente ao bloco onde resido actualmente. Dormi quase 20 horas era tal o cansaço!
Arranquei a queimar pneu para quatro dias depois estacionar o carro em frente ao bloco onde resido actualmente. Dormi quase 20 horas era tal o cansaço!
O início de uma longa jornada numa viagem sem regresso previsto
A família formou-se a partir do momento que me casei, fiz-lo com convicção e responsabilidade. Essa família ia ser luso-polaca, seja em Portugal, na Polónia ou na Austrália.
Entretanto as queixas da família portuguesa continuam. Os salários são baixos, não há emprego, os assaltos e violência ocorrem todas as semanas e são empolados pela comunicação-social ad nausea, o preço da gasolina e do gasóleo está "pela hora da morte", o pão caro e aumentar sempre que o gasóleo aumento e a não diminuir sempre que o gasóleo fica mais barato, a carne caríssima, fecham maternidades e abrem clínicas privadas com tudo o que é necessário, os Audi, BMW, Mercedes e Porsche (cor preto ou prata e agora brancos - a moda assim o dita) continuam a vender bem apesar da crise financeira, fecham fábricas todas as semanas, em Famalicão as lojas do chineses abriram falência e só sobraram algumas, muitos portugueses emigram para a Inglaterra, Suíça e Luxemburgo e o Governo avança com um TGV - Train à Grande Vitesse (que fino fica em francês) e com novas pontes em Lisboa, um novo aeroporto vai ter lugar na Margem-Sul do Tejo e as crianças portuguesas andam - as que podem - com uns mini-portáteis chamados de Magalhães.
Mas faz-me falta o sol, as praias, ouvir a rebentação e sentir a salitre na pele, faz-me falta a gastronomia, a francesinha, uma mesa numa esplanada junto ao mar com uma cerveja e um pratinho de tremoços, faz-me falta entender tudo o que dizem nas ruas, nas casas, na televisão, dizer bom dia e "então? tudo bem?", gostaria de ter aqueles jantares de família com a bela da carne assada e um vinho tinto, as discussões típicas sobre futebol - mesmo que não perceba quase nada sobre esse desporto, tenho saudades de uma discussão sobre um assunto polémico sem que pensem que estou enervado ou que quero bater em alguém. Fazem-me falta os portugueses, o tal povo que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.
O regresso? Talvez um dia, uma casinha de campo ou junto à praia, no Sul de preferência. Tornei-me um cidadão do mundo - esse cliché eu sei - por vezes sinto-me um estrangeiro no meu próprio país, quando estou em Portugal começo a sentir saudades da Polónia e quando estou na Polónia sinto saudades de Portugal, como diz o meu amigo Luís S. que também mora aqui em Łódź, "já sabes... estaremos sempre divididos mas não me vejo a envelhecer aqui (na Polónia)".
Mas faz-me falta o sol, as praias, ouvir a rebentação e sentir a salitre na pele, faz-me falta a gastronomia, a francesinha, uma mesa numa esplanada junto ao mar com uma cerveja e um pratinho de tremoços, faz-me falta entender tudo o que dizem nas ruas, nas casas, na televisão, dizer bom dia e "então? tudo bem?", gostaria de ter aqueles jantares de família com a bela da carne assada e um vinho tinto, as discussões típicas sobre futebol - mesmo que não perceba quase nada sobre esse desporto, tenho saudades de uma discussão sobre um assunto polémico sem que pensem que estou enervado ou que quero bater em alguém. Fazem-me falta os portugueses, o tal povo que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.
O regresso? Talvez um dia, uma casinha de campo ou junto à praia, no Sul de preferência. Tornei-me um cidadão do mundo - esse cliché eu sei - por vezes sinto-me um estrangeiro no meu próprio país, quando estou em Portugal começo a sentir saudades da Polónia e quando estou na Polónia sinto saudades de Portugal, como diz o meu amigo Luís S. que também mora aqui em Łódź, "já sabes... estaremos sempre divididos mas não me vejo a envelhecer aqui (na Polónia)".
4 comentários:
Mais uma vez, arrepiaste-me com este texto. Adorei. Parabéns.
Apesar de não partilhar totalmente desse pessimismo tão profundo sobre o nosso país, se pudesse emigrar hoje, não hesitava em ir para a Polónia.
Que saudades de tudo....
Obrigado Fernando. Nota que o pessimismo a que refiro leio e oiço amiúde de pessoas que vivem em Portugal até porque aqui na Polónia não é um mar de rosas, ao contrário daquilo que muitos portugueses pensam.
O texto de Guerra Junqueiro parece servir como uma luva passados 113 anos.
Se já é mau que as palavras do Guerra Junqueiro sejam válidas passados 113 anos, memo mas memo mauzinho, é a perspectiva de daqui a 123...133 anos, continuem válidas.
Em linguagem técnica, Portugal apresenta um potencial de crescimento do PIB muito baixo, que colocará em causa a recuperação após o fim da crise mundial. Em linguagem de tasca, esta porra quando os outros recomeçarem a crescer, Portugal fica de carro vasoura. Aliás, fruto da sua posição geográfica, cada vez será mais o cu da Europa...
E se não fosse o apego dos portugueses à família, então é que todas as pessoas lúcidas (ou sem tacho) davam de frosques.
Compreendo-te muitíssimo bem. Estive há pouco em Portugal e desta vez parece que todos tiveram a mesma ideia de nos convencer a vir para Portugal viver. Foi um massacre! Claro que o meu lado emocional responderia logo que sim, que vamos voltar. Mas quando começo a olhar para tudo o que se passa em Portugal... Fico triste ao ver que, de facto, neste momento na Polónia temos melhores possibilidades para viver e para os nossos filhos viverem. Gosto muito de Portugal, o meu marido também, sempre que lá vamos regressamos a analisar os prós e os contras de uma mudança para lá. Só que infelizmente a balança tem pendido sempre para estar na Polónia. Esperemos que algum dia a situação em Portugal mude e já possamos ir viver para lá.
Enviar um comentário