sábado, 6 de dezembro de 2008

Anna Walentynowicz - O "Salgueiro Maia" polaco




"Há diversas modalidades de Estado: os estados socialistas, os estados corporativos e o estado a que isto chegou! Ora, nesta noite solene, vamos acabar com o estado a que chegámos. De maneira que quem quiser, vem comigo para Lisboa e acabamos com isto. Quem é voluntário sai e forma. Quem não quiser vir não é obrigado e fica aqui."

Salgueiro Maia foi, durante muitos anos, um "ilustre desconhecido" de muitos portugueses, não quis protagonismo, recusou cargos políticos e limitou-se a cumprir o seu trabalho (assumindo um grande risco) naquela madrugada de Abril de 1974, proferiu a frase supra quando ainda se encontrava na Escola Pratica de Cavalaria em Santarém.
Com certeza perguntam-se o que tem Salgueiro Maia a ver com Anna Walentynowicz, perguntar-vos-eis o que tem a ver Portugal de 1974 com a Polónia. Eram dois regimes opostos, gentes que mal se conheciam e vivia-se em plena Guerra Fria, a Europa estava divida por uma "Cortina de Ferro" e assim esteve durante mais de uma década.

Salgueiro Maia e Anna Walentynowicz são ambos heróis quasi-esquecidos da revolução.

Lech Walesa é, para todos os efeitos, o ícone do Sindicato-Livre Solidariedade mas a tão conhecida e respeitada figura da oposição polaca não esteve sozinho nas inúmeras greves e conspirações que os trabalhadores dos estaleiros de Gdansk fizeram durante o socialismo.


Anna Walentynowicz era uma das poucas mulheres a trabalhar nos gigantescos estaleiros de Gdansk (um verdadeiro "Mens World), começou como soldadora e passou a manobradora de guindaste alguns anos depois.
A Polónia socialista era um verdadeiro ninho de vespas onde a luta pela sobrevivência levava alguns polacos a tornarem-se desonestos e corruptos sobretudo nos cargos políticos e de chefia, os estaleiros não eram excepção e Anna, na altura uma jovem, depressa se apercebeu que o "Partido" era uma ilusão, um embuste. Do mesmo modo se apercebe que as chefias eram tudo menos imparciais e honestas. A primeira grande desilusão acontece quando Anna se apercebe que o patrão desviava dinheiro dos salários dos trabalhadores para adquirir boletins da lotaria.

O marido de Anna também trabalhava no estaleiro e dessa união nasce um menino, poucos anos mais tarde o marido morre com um enfarte deixando Anna viúva e com um filho para criar, no entanto Anna continua a sua luta apesar de lhe ser diagnosticado um cancro que, por milagre, desaparece. Anna atribui a cura a Nossa Senhora.

As desigualdades entre as classes sociais eram gritantes, as chefias ligadas ao partido e à nomenclatura beneficiavam de privilégios que a maioria não ambicionava. Os direitos dos trabalhadores, num estado dito socialista, eram praticamente simbólicos.
Certo dia Anna operava o guindaste quando se dá uma enorme explosão seguida de incêndio num dos gigantescos navios que estava a ser montado. Um trabalhador irresponsável tinha decidido beber vodka e fumar um cigarro dentro do navio onde amiúde se encontravam materiais inflamáveis e gases provenientes do gás usado pelos soldadores. Nesse dia contudo alguns deles tiveram sorte pois Anna, com muito sangue frio, tirou alguns borda fora usando o guindaste que manobrava!

O balanço foi trágico, morreram muitos dos seus colegas, alguns deles jovens com famílias para criar. A resposta do partido não se fez esperar, toda a unidade que trabalhava naquela secção do navio foi despedida sem direito a indemnização e com perca dos salários e regalias sociais.

Anna encontrava-se na miséria, tal como muitos dos seus colegas inclusive os sobreviventes do incêndio. Começa assim um descontentamento geral que levou a inúmeras greves e paralisações que tiveram repercussão em toda a Polónia, os estaleiros de Gdańsk eram o "farol" da classe proletária e o símbolo do poder do povo polaco sobre um sistema corrupto e viciado.

O partido apercebe-se do poder dos trabalhadores de Gdańsk e não consegue conter a onda de greves no país. Nessa altura alguns dos trabalhadores organizam-se em movimentos de resistência contra o partido, surge o jornal Robotnik Wybrzeza (O Trabalhador Costeiro) que era imprimido ilegalmente e distribuído por inúmeros trabalhadores.


O "Trabalhador Costeiro" era imprimido na clandestinidade a medo e em caves

O jornal passa a ser proibido e os seus editores e colaboradores perseguidos, Anna não mostra medo e assume que distribuía o jornal, chega mesmo a dar em mão aos patrões um exemplar mas acaba por ser despedida (a cinco meses da reforma) acusada de pertencer a um sindicato ilegal e de ter atitudes irresponsáveis (sic), Walesa também é despedido causando grande revolta e consternação em todos os colegas.

A greve de 4 de Agosto de 1980, em protesto com os despedimentos de Anna e Lech Walesa, dita uma mudança radical na organização e gestão dos estaleiros de Gdańsk e um duro golpe no partido comunista que vai ter como resposta momentos de grande violência, injustiça e crueldade.

A génese do Sindicato-Livre Solidariedade nasce quase espontaneamente no rescaldo da greve, numa das muitas paralisações dos estaleiros, que duravam vários dias, o partido decide carregar nos grevistas. De inicio as ordens são para apontarem as espingardas para as pernas, depois para o peito e no fim para a cabeça.


Inúmeros trabalhadores e transeuntes são detidos pela polícia, outros tantos são espancados e presos. Anna é agredida e presa, sofre torturas e humilhações nas mãos da polícia, deixa de receber salário e fica virtualmente na miséria. Quando é libertada da cadeia entra num autocarro apinhado de gente, seguem-na dois agentes, o seu rosto estava dilacerado pela pancada, as pessoas pretendem que não vêem mas Anna grita alto e bom som que "eles" batem nas pessoas, que o partido agride os trabalhadores, os agentes saem de imediato na próxima paragem.

Chega a casa e ainda recebe telefonemas de ameaça, chamam-lhe puta e riem-se da situação em que ela se encontrava, regozijam-se com o castigo dado pelo partido no entanto face aos protestos e descontentamento reintegram-nos pouco depois.

Foram tempos de grande consternação para a Polónia e para os polacos. Devido a este tumultos a Polónia passa a ser notícia nos telejornais ocidentais, tudo parece indicar que a qualquer momento uma nova "Primavera de Praga" pode acontecer e o Grande Irmão soviético não admite sequer que algo semelhante ocorra.
A Polónia andava a trazer demasiados problemas para o Comintern e sobretudo para a URSS, alguns anos antes o Vaticano tinha elegido um Papa polaco e agora surgia a génese de um movimento democrático anti-comunista, paira no ar a ameaça do colapso da URSS, o fim do comunismo.

Lei Marcial de 1981-1983 (três longos anos de opressão)


Em 1981 em reacção a estes movimentos pro-democráticos e tentando evitar uma invasão russa para "manter a ordem", o General Jaruzelski declara a Lei Marcial em todo o território polaco, as ruas passam a ser patrulhadas pelo exército e a partir de determinada hora ninguém sai à rua, as escolas e universidades são fechadas tal como as fronteiras terrestres, marítimas e os aeroportos.

Em todo o lado são presos suspeitos, espancam-se pessoas e interrogam-se tantas outras. No entanto os movimentos de resistência organizam-se, o Vaticano e CIA apoiam-nos na sombra mas o Solidariedade era já uma instituição e o partido apercebe-se que só negociando poderia obter a paz e a acalmia tão necessária num tempo em que necessário apresentar contas à URSS.

Walentynowicz esteve sempre ao lado de Lech Walesa, ou Lech Walesa esteve sempre ao lado de Walentynowicz?

Em 1989, antes da data oficial do colapso do comunismo, a Polónia desmarca-se do bloco-soviético naquilo que ficou conhecido como "negociações da mesa-redonda". Abrem-se precedentes para a realização de eleições-livres no futuro, legalizam-se os sindicatos e associações e abre o Senado e o Sejm.

Walesa é o herói, o homem que fez a diferença, recolhe os louros da vitória e torna-se um dos polacos mais mediáticos a seguir a Karol Wojtila ou João Paulo II. Anna havia-se retirado das lides politicas depois de criticar Walesa, o Solidariedade e o rumo que este sindicato havia tomado. Anna não se identifica mais com o sindicato que ajudou a erguer.

Em consequência de factos como o cataclismo de Chernobyl, da Perestroika de Gorbatchev e das negociações da mesa-redonda o efeito dominó fez-se sentir em todo o bloco soviético e em Dezembro de 1989 o Wind of Change* sopra na RDA, cai o derradeiro símbolo do comunismo, o Muro de Berlim.

Walesa divide os polacos, uns adoram-no outros odeiam-no, uns acusam-no de ser um espião dos russos e colaborador dos serviços secretos polacos outros dizem que ele é o patriota e o verdadeiro símbolo da revolução.

Anna Walentynowicz não é lembrada por Walesa nem por o sindicato mas é lembrada por o conhecido realizador polaco Andrzej Wajda no seu filme Człowiek z żelaza (Homem de Aço) e no documentário Strike (Greve). No ano de 2005 recebe a medalha Truman-Reagan Medal of Freedom.

Enquanto Walesa luta por recuperar a sua imagem - agravada depois do lançamento de um livro onde alegadamente se desmantela a sua historia de espião e traidor - Anna goza cada vez mais o estatuto de heroína honesta e verdadeira simbolo das lutas sindicais polacas.

Anna é uma mulher simples que lutou por os seus ideais sem medo e sem pretensões, tal como Salgueiro Maia, Anna ficara para sempre no panteão dos verdadeiros lutadores pela liberdade.

*Wind of Change - Música dos Scorpions que se tornou um hino das mudanças ocorridas na Europa Central e de Leste depois da queda do Muro de Berlim.





1 comentário:

Anónimo disse...

Bem hajas por lembrares aqueles que muitos desejam não lembrar.
Muito bem escrito.