O assassinato a sangue frio do autarca de Gdańsk, Paweł Adamowicz, a 14 de Janeiro de 2019, na final do espetáculo da WOŚP (Grande Orquestra de Caridade Natalícia) expõe claramente o que tem vindo a ser observado, escrito, reportado, divulgado e inclusivamente repreendido (pela Comissão Europeia); Os média estatais polacos estão sob absoluto controlo do partido no poder, o PiS (Lei e Justiça), numa cavalgante censura, mascarada de informação, num nível nunca antes visto, a relembrar - dizem muitos polacos - os tempos obscuros e deprimentes da PRL ou República Popular da Polónia, onde o sistema Socialista-Comunista procurava controlar todos os aspectos da vida dos seus cidadãos.
Já muito se escreveu e noticiou sobre a morte do Presidente da Câmara da cidade costeira que viu nascer o sindicato livre Solidariedade. O assassinato brutal e despropositado de Paweł Adamowicz foi notícia por todo o mundo e teve repercussões muito além das fronteiras da Polónia, portanto acerca disto não há muito mais a acrescentar. Porém tudo o que ocorreu entre o fatídico dia e o funeral de Adamowicz - um evento nacional com direito a três dias de luto - foi noticiado de modo completamente distinto no que diz respeito aos média deste país na Europa Central.
É certo e sabido que todos os meios de informação sob a alçada de qualquer Estado estão inevitavelmente sujeitos a serem instrumentalizados, como é o caso de Portugal e da RTP que foi fundada pelo Estado-Novo de Salazar e posteriormente administrada numa autêntica "dança de cadeiras" entre os partidos que foram intercaladamente formando governo desde 1974. Igual situação ocorre na BBC, TV Globo, TVE em Espanha, France TV etc.
A Polónia não é excepção e o canal estatal TVP (Telewizja Polska) com todos os seus estúdios nas grandes urbes, como a TVP3 Warszawa, TVP3 Łódź, TVP3 Gdańsk, TVP3 Wrocław, TVP3 Poznań, TVP3 Białystok etc, emite diariamente em três canais: o TVP1, TVP2 e os já mencionados TVP3, mais os canais de especialidade como os de desporto, história, cultura, infantil entre outros.
As jocosas comparações entre o canal TVP e a estação televisava norte-coreana KCNA. A actual pivot do noticiário estatal Danuta Olecka semelhante à apresentadora da Coreia do Norte, Ri Chun Hui. |
O canal TVP Info (de notícias) emite 24/7 sendo o principal serviço noticioso, desde 1989, quando a Polónia se tornou uma Democracia. É denominado de "Wiadomości" ou seja, Noticias. É aqui que mais se nota a carga da agenda política do PiS. A perda galopante de qualidade jornalística, de imparcialidade é tal que surgem inúmeros memes comparando a TVP ao canal Norte Coreano KCNA, como estando a imitar as táticas do Ministro da Propaganda Nazi, Joseph Goebbels ou simplesmente como uma enorme palhaçada. Um canal televisivo que cada vez mais se aproxima dos pilares ideológicos do partido de Kaczyński, uma quase-réplica do tão salazarista Deus, Pátria e Família que foi derrubado pela Revolução dos Cravos há quase 50 anos.
A agenda política do PiS, onde a cabeça do polvo são os fundadores, os irmãos Kaczyński, de braço dado com certas figuras proeminentes e influentes da Igreja Católica polaca (note-se que muitos católicos polacos e clero não apoiam este partido) e da Polónia conservadora da Direita cristã, espalha-se assim, ao sete-ventos, diariamente, cortanto a eito tudo o que não lhes convém noticiar ou simplesmente não faz parte das suas ideologias. Quaisquer referências ou acontecimentos respeitantes a minorias, emigração, comunidade gay, laicismo, União Europeia, instituições ecológicas independentes, racismo e intolerância - crescente na Polónia - e diversidade passam a ser não-notícia, são distorcidos ou passam como nota de rodapé. Os próprios programas televisivos, desde as novelas, passando pela escolha de filmes, séries televisivas, debates e documentários são escolhidos a dedo, havendo uma cada vez maior divulgação, por vezes ad nausea, de programas sobre a história da Polónia relembrando os horrores que a nação polaca sofreu ao longo da sua vasta e trágica linha temporal.
O cortejo fúnebre nos históricos estaleiros de Gdańsk
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O funeral de Paweł Adamowicz foi um evento histórico para todos os efeitos, juntou milhares em Gdańsk - perto de 50.000 almas - desde populares até figuras públicas, políticos de todos os quadrantes, celebridades e representantes de Estado e da União Europeia. Já não se via tal desde os funerais das vítimas do desastre de Smolensk em 2010.
As exéquias fúnebres, desde a missa celebrada em câmara-ardente até ao funeral propriamente dito foram transmitidas pelos principais canais televisivos, especialmente o rival TVN24, em direto. Numa inusitada, mas não surpreendente transmissão, o canal estatal TVP, cortou propositadamente os momentos vividos dentro da histórica basílica medieval de Santa Maria onde, entre muitos, estavam inúmeros líderes e membros da oposição e do Senado mas também arqui-inimigos de Kaczyński, como Lech Wałęsa (onde escandalizou mais uma vez ao usar uma t-shirt onde se lia Konstytucja), Donald Tusk e o ex-Presidente Aleksander Kwasniewcki. O descalabro foi tal que a filmagem só era retomada quando algum político do PiS, o Primeiro-Ministro Mateusz Morawiecki ou o Presidente Andrzej Duda cumprimentavam a viúva, as filhas do falecido ou membros do clero.
O canal televisivo tem um novo logótipo de acordo com os internautas polacos... |
Como os tempos são outros, apesar de alguns indivíduos cristalizados e obedientes na TVP pensarem à antiga, a Internet polaca foi rápida e eficaz em captar e divulgar nas redes sociais o "contraste". Vídeos no YouTube mostram claramente a homenagem prestada na basílica, transmitida por canais privados, enquanto a TVP mostrava grandes planos de Gdańsk ou um conveniente close-up da multidão em frente do edifício religioso na tentativa de demonstrar que o acontecimento foi de menor importância...
A Orquestra de Caridade e o PiS
A decisão política, desde sempre, do PiS em não apoiar a Grande Orquestra de Caridade Natalícia, devido sobretudo ao facto desta instituição ser privada, laica e independente do Estado, baseada na idéia e trabalho árduo de Jerzy Owsiak, o homem dos óculos vermelhos, está alinhada com os sectores e círculos mais conservadores da Igreja Católica, que suportam instituições como a Caritas e outras afiliadas ao catolicismo. Nesse sentido toda a organização do evento (abreviado como WOŚP) a nível de segurança é baseada em contratos com firmas privadas e não com a polícia que, nos dias de recolha de contribuições, praticamente não se vê, apesar da aglomeração de pessoas nas ruas, centros comerciais e concertos musicais onde cada cidade vai contar a quantia recolhida ao fim do dia.
Foi nesse ambiente de festa onde a segurança é mínima que o assassino de Paweł Adamowicz, um agressivo cadastrado e assaltante, teve a oportunidade de se dirigir na direção do presidente, empunhar, entre a multidão, uma faca, subir ao palco e desferir inúmeros golpes para ainda ter tempo de agarrar no microfone justificando o seu acto como vingança por alegadas torturas que o partido PO (Plataforma do Cidadão) lhe impôs, partido esse que foi em tempos o de Adamowicz, antes de este se tornar independente. O Po é por excelência o principal opositor dos conservadores cristãos.
Neste vendaval e sob enorme pressão o fundador do WOŚP e celebridade polaca, Jerzy Owczak, demite-se do seu cargo provocando uma enorme onda de solidariedade que o levou a aceitar novamente os comandos da instituição, volvida uma semana, enquanto, a pedido da viúva do presidente falecido e alegadamente do próprio antes de falecer, uma recolha de fundos intitulada "vamos ajudar a encher a última latinha do presidente para o WOŚP" para a causa da Grande Orquestra tendo atingido hoje, dia 23 de Janeiro, quase 16 milhões de Złoty (3 milhões e 700 mil Euro) que se vão juntar aos quase 100 milhões de Złoty (23 milhões de Euro) recolhidos pelos voluntários.
Foram, no entanto, as palavras de um amigo pessoal de Adamowicz, o Frei Ludwik Wisniewski, que mais impressionaram:
"Não podemos ficar indiferentes ao espalhar do veneno do ódio nas ruas, nos meios de comunicação social, na Internet, nas escolas, no parlamento e também nas igrejas", relembrando aos presentes a notória ausência de Jarosław Kaczyński "Uma pessoa cheia de ódio, que construiu a sua carreira baseada na mentira, não pode sustentar posições destas no nosso país e vamos certificar-nos disso".
A ovação foi longa mas todos os apelos na missa a pedirem o fim do discurso do ódio e manipulação dos média não passaram na TVP...
A ovação foi longa mas todos os apelos na missa a pedirem o fim do discurso do ódio e manipulação dos média não passaram na TVP...
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