Três mecânicos de cabelos grisalhos e bigode (uns bons nabos pelos vistos) e um radiador errado são a receita ideal para o sobreaquecimento do motor que pode queimar a junta da colaça (como dizem no Brasil "junta tudo e deita fora") e mexer nos nervos do proprietário de um já veterano Renault Scenic. Foi isso que me levou a andar uma semana de elétrico e a pé, não é mau de todo, antes pelo contrário, mas fazê-lo num percurso de 12 quilómetros passando por zonas ditas tenebrosas como a longa rua Zgierska e a famosa Kilińskiego é algo pouco agradável.
Quase ninguém fica positivamente impressionado com Łódź, especialmente durante o Inverno, quando o frio e as árvores despidas de folhas expõem os velhos prédios cinzentos e em parte devolutos do centro da cidade. São as chamadas kamienica, velhos prédios construidos há mais de cem anos com tectos altos, janelas altas e entradas típicas onde um carro mais largo não passa para o pátio. Na idade de ouro da cidade, quando haviam burgueses e ricos as kamienica eram edifícios de luxo, com portões, campainhas e corrimões em madeira com o vão das escadas largo e rasgado com janelas e vitrais. Os tempos mudaram no inicio do século XX, com as guerras laborais, a revolução russa, a I Grande Guerra a rugir entre 1914 e 1918 e o declínio total com a invasão das tropas alemãs entre 1939 e 1945. Muitos dos proprietários desses edifícios foram deportados para Auschwitz e Treblinka onde viriam a perecer nas infames câmaras de gás.
Depois de 1945 os proprietários não as reclamaram e o comunismo que se impôs após a divisão do "bolo" pelos vitoriosos tornou tudo parte do Estado polaco, nacional e intransmissível. Inúmeras famílias polacas ocuparam essas kamienica, havia chegado o tempo das empresas estatais e do trabalho pelo bem colectivo. Muitos desses apartamentos foram divididos em dois, para albergarem mais famílias e assim permanecem até hoje - por vezes vou a um desses apartamentos na rua Narutowicza, perto do Grande Teatro de Łódź. Uma senhora polaca que por ser casada com um médico judeu teve de ir embora do seu próprio país, no princípio dos anos 70. O médico foi "convidado" a sair da Polónia; os judeus aparentemente ainda eram responsáveis pelos inúmeros problemas que afetavam a República Popular da Polónia e destinos como Israel, EUA e a Holanda foram os escolhidos pelos expatriados. A senhora em questão ficou pela Holanda e de vez em quando volta a Łódź para revisitar a sua cidade e comprar flores para colocar nos jazigos dos seus entes queridos, entre os quais o pai que durante quase 20 anos não conseguiu visitar. Só o fim do comunismo poria um fim a proibições patéticas e inquéritos Kafkianos para obter um passaporte e um visto de viagem.
Atualmente no coração da cidade de Łódź podemos ver esses edifícios onde a degradação dos mesmos é visível, com exceções para alguns restauros verdadeiramente espetaculares como este da kamienica Edward Lungen construida em 1896. As figuras típicas que saem de alguns desses prédios são uns indivíduos com um aspeto duvidoso, fato de treino escuro, cabeça rapada e coberta pelo carapuço, meia branca e sapatilhas de marca, preferentemente Nike ou Adidas. Amiúde vão de lata de cerveja na mão, cigarro na outra e não gostam de ser olhados, tudo é um bom pretexto para encetar uma cena de pancadaria mesmo que não ganhem. Por vezes aparecem a conduzir velhos BMW, Opel Calibra e VW Golf adaptados a tuning.
Existem planos concretos para a erradicar a pobreza no centro de Łódź. Algumas dessas kamienica problemáticas foram e serão demolidas, outras vão ser renovadas e as famílias podem, se quiserem, receber o precário apoio da segurança social polaca e dos programas de reintegração na sociedade. Surgem novos projetos de espaços verdes e de lazer para não haver a sensação de claustrofobia num mundo onde impera o cinzento. Łódź-centro é velho, cinzento e com uma pesada herança histórica. O meu elétrico lá passou as zonas "tenebrosas" com o seu passageiro português, as velhas kamienica dão lugar a rasgadas avenidas com trânsito em velocidade e a vizinhanças-dormitório onde finalmente se pode estar menos alerta e deixar o corpo embalar pelas sacudidelas do velho elétrico número 4 que dá a volta no limite entre Łódź e Zgierz.
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