sexta-feira, 2 de outubro de 2009

Dimitri nie zyje - O Dimitri morreu

 Quando saíste da linha de montagem da firma Polar devia fazer um frio de rachar, nesses tempos os Invernos não eram como hoje em dia. Haviam dias em que nevava tanto que os poucos carros particulares que estavam estacionados em frente dos prédios desapareciam por completo e não se pegavam neles durante semanas, faziam-se autênticos muros de neve nos passeios e por vezes os autocarros não conseguiam circular.

Dimitri; sei que passaste por tempos difíceis num país que fazia parte do bloco soviético.  Enquanto gelavas, a Polónia esteve em estado de sitio. Viste passar soldados na rua, mesmo por baixo da cozinha onde te encontras, Lech Wałęsa tentava passar a mensagem de libertação do sindicato livre Solidarność (Solidariedade) e dos trabalhadores polacos que enfrentavam as elites do partido, o Vaticano elegia um Papa polaco chamado Karol Wojtyła, a URSS e os EUA estavam em guerra fria - não tão fria como o teu congelador - e as Brigadas Vermelhas atacavam alvos na Europa Ocidental naquilo que mais tarde se veio a saber ser uma estratégia imunda dos serviços secretos ocidentais para causar tensões e reforçar os poderes da OTAN na infame Operação Gladio.

Provavelmente sabias onde o teu dono escondia aqueles livros e cartas que o regime não tolerava, nunca o denunciaste a ninguém do partido, sempre aceitaste o catolicismo e a fé da tua dona, passaste pelas mãos de uma menina que hoje em dia é mãe e também tua dona, sofreste com a curiosidade do filho daquela menina polaca e do seu marido português mas não conseguimos evitar que ele te ligasse e desligasse no botão de descongelar, não somos omnipresentes e as tuas borrachas nunca vedaram por aí além de modo a ficares bem fechado.

A dada altura deves ter achado incorrecto o boicote de muitos países ocidentais ao Jogos Olímpicos de 1980 em Moscovo - por causa da invasão do Afeganistão - mas ficaste satisfeito com o boicote da URSS e dos comunistas quatro anos depois, em protesto pelo boicote anterior.
Mal sabias que um dia um dos teus donos havia de ser de um país do outro lado da Cortina de Ferro, que irias gelar Coca-Cola, Pepsi, Fanta e até bacalhau.

Ficaste revoltado quando encontraram o cadáver massacrado do padre Popieluszko e o levaram dentro da bagageira de um Fiat 125P, apanhaste um grande susto quando a central nuclear de Chernobyl na Ucrânia (então parte da URSS) explodiu um dos reactores e na recta final dos anos oitenta assististe a grandes mudanças naquilo que te rodeava, o teu congelador e as tuas prateleiras tinham mais produtos para congelar, haviam mais marcas do que antigamente, os iogurtes começaram a ter pedaços de fruta e apareceram os primeiros códigos de barras.

Nunca te recusaste a trabalhar apesar da tua voz ter ficado mais rouca ao longo do tempo (não vou esquecer aquele zumbido durante a noite!) e teres um elevado salário de Kw/hora, tampouco de precisares de descongelar regularmente para não entorpeceres. Desculpa por pensar que eras um Dimitri qualquer da URSS, afinal eras polaco, deves ser algum Lech, Marian, Kazimierz?




Passaste do século XX para o XXI a congelar, no novo milénio continuaste a manter as mais frias relações com os teus donos e quase chegavas ao fim da primeira década do novo século mas anteontem deixaste de  funcionar, não avisaste ninguém que ias partir para a sucata.

Quem quer pensar em reparar-te? Dizem que o custo não compensa, que o teu compressor deixou de funcionar, que há outros frigoríficos mais económicos e que inclusivamente se podem bloquear para que as crianças não lhes mexam, o tempo passou tão depressa Dimitri... os frigoríficos já nem fazem gelo, onde já se viu isso? O gelo e frio em abundância eram o grande atributo dos frigoríficos modernos, agora já não têm gelo e alguns até vêm com ecrãs de LCD onde sabemos que funções escolher e programar.

Tens um novo nome a titulo póstumo, chamas-te agora elektro-złom, ou seja, sucata-eléctrica.

Do Widzenia Dimitri!


6 comentários:

Tia Maria disse...

Paz á sua alma. lol
Cumprimentos da terra das tulipas.

Ricardo disse...

Dank je wel Tia Maria! May he finnaly rust in peace...

PM Misha disse...

belo testimonial q:)

Geraldo Geraldes disse...

A mais poética perda de tempo dedicada a um frigorífico que já li :).
Ps: Também há cerca de dois meses o meu Zanussi com uns 35 anos deixou de habitar a casa dos meus progenitores. Mas ainda está a serviço!!! Foi apenas deslocalizado...

Anónimo disse...

Perda de tempo?Quando um texto tem tanta qualidade,mesmo a falar de um frigorífico,vale a pena.
Boa Ricardo a tua progenitora orgulha-se.
Cá para nós,eu conhecia esse electro doméstico,com todo o respeito à sua «historia»estava na hora!pena os inconvenientes...

Ricardo disse...

Estás a ver Fernando, não te metas com uma mãe-galinha! LOL